Nota introdutória

O mercado financeiro é, dentro dos ramos da economia, talvez a área que conte com maior grau de regulação estatal, seja por meio da legislação ordinária, seja por meio de órgãos reguladores governamentais.

 

E dentro do mercado financeiro, o segmento de mercado de capitais conta com elevado rigor e monitoramento por parte destes órgãos. Esta é uma situação que se verifica no mundo inteiro. Nos Estados Unidos, a regulação está a cargo da SEC – Securities and Exchange Comission – e no Brasil esta função é exercida precipuamente pela CVM – Comissão de Valores Mobiliários.

 

Os deveres de transparência e confiabilidade

A transparência e a confiabilidade do mercado de capitais são pilares essenciais para sua sobrevivência e para a circulação e geração de riquezas. Sem a confiança dos investidores, e sem o conhecimento claro, transparente, de todos os fatos relevantes e de todas as informações relativas às companhias que oferecem seus papéis no mercado, não há como se pretender que este mercado seja eficiente, e que atinja os seus propósitos.

O professor Eugene Fama, da Universidade de Chicago, ganhador do Prêmio Nobel de economia em 2013, é conhecido por um trabalho publicado ainda nos anos 1970, em que desenvolve a “hipótese do mercado eficiente”. Para os limites deste artigo, importa dizer que o professor aponta três tipos de eficiência de mercado: (I) a fraca; (II) a semi-forte; e (III) a forte.

A hipótese “fraca” considera que os preços negociados para os valores mobiliários refletem a informação pretérita, disponível publicamente; A hipótese “semi-forte” afirma que os preços refletem a informação pretérica, mas também que os preços mudam instantaneamente para refletir as novas informações públicas. Já a hipótese “forte” afirma que os preços são influenciados até mesmo por informações ocultas ou “privilegiadas”.

A hipótese “forte” refere-se, entre outras coisas, à informação do insider trader, ou seja, implica a possibilidade de manipulação ilícita de mercado, gerando ganhos ilegais para quem tem a informação privilegiada, ou gerando perdas irregulares para quem não detém tal tipo de informação.

É justamente para coibir estas práticas, e para garantir que o ambiente do mercado de capitais seja confiável, seguro, sujeito apenas às regras normais do mercado como um todo, e aos riscos inerentes à atividade empresarial, que os órgãos reguladores, juntamente com a legislação que disciplina a matéria, impõem uma série de obrigações, tanto às empresas que oferecem seus papéis no mercado, quanto a seus administradores e acionistas controladores.

Dentre estas obrigações, se inclui a de agir de forma absolutamente transparente, revelando ao mercado todo e qualquer fato relevante que possa influir nas perspectivas de ganho ou perda de determinada empresa. Outra obrigação, de cunho negativo (obrigação de não fazer) é a vedação, àquele que detém informação privilegiada, de negociar papéis de determinada empresa, pois estaria operando em condições de vantagem – ilícita – em relação aos demais investidores, causando-lhes perdas ilegítimas.

 

Onde isso está escrito

Como exemplo destas regulações, a SEC – Securities and Exchange Comission, dos Estados Unidos – prevê em sua regra 10B.5, inserta no Securities Exchange Act, a ilegalidade, entre outras condutas, de se fazer qualquer declaração inverídica sobre algum fato, ou de se omitir qualquer fato que possa influenciar na compra ou venda de algum título mobiliário.

Da mesma forma, a CVM – Comissão de Valores Mobiliários, do Brasil – prevê em sua instrução 400/2003, que “o ofertante é o responsável pela veracidade, consistência, qualidade e suficiência das informações prestadas por ocasião do registro e fornecidas ao mercado durante a distribuição.” Vale dizer, quando ofertar ao mercado a aquisição de papéis, o ofertante vincula-se, e é responsável – civil e criminalmente – pelas informações que presta.

 

O caso da Petrobrás

Especificamente no caso da Petrobrás, todas as notícias veiculadas na imprensa nos últimos tempos, e toda a investigação levada a cabo pela operação Lava Jato, demonstram que a empresa, seus administradores e seu acionista controlador – a União – descumpriram as obrigações básicas de uma empresa que oferta seus papéis no mercado de capitais.

Sem dúvida, houve uma discrepância entre aquilo que se divulgava e o que realmente ocorria.

Ora, a companhia divulgava que contava com rígidos instrumentos de controles internos, e com auditoria externa que atestava a lisura de suas operações. Mas na realidade estava sendo sangrada por seus próprios administradores, gerando perdas bilionárias. Faltou portanto com transparência, e omitiu informações que certamente influenciariam as decisões de investidores, seja de adquirir papéis, seja de mantê-los em carteira.

 

O tamanho do prejuízo3082569830_270db14f86_b

Para que se tenha uma ideia do tamanho dos danos causados, a Petrobrás, que chegou a ser a oitava maior companhia do mundo, com valor de mercado de mais de US$ 150 bilhões, hoje ocupa a 416a. posição, segundo o ranking da revista Forbes divulgado em maio de 2015. Seu valor de mercado está estimado em US$ 44 bilhões. A revista Forbes classifica a Petrobrás como uma das maiores perdedoras de alto perfil, e destaca os problemas contábeis e de corrupção que atingiram a companhia no ano passado.

Ou seja, além dos prejuízos financeiros diretos, a companhia sofre ainda com graves danos a sua reputação. Isso talvez seja ainda mais severo do que as perdas financeiras, pois coloca em dúvida a capacidade de recuperação da empresa no médio e longo prazos.

Por conta de tudo isso, nos Estados Unidos foram ajuizadas pelo menos 6 Class Actions (instrumento jurídico que se aproxima da nossa Ação Civil Pública), que agora estão unificadas sob a corte de Nova York, e presididas pelo juiz Jed Rakoff. Estimativas conservadoras dão conta de que a indenização deverá ser fixada em pelo menos US$ 4 bilhões, podendo chegar a até US$ 10 bilhões.

 

E no Brasil?

No Brasil, ainda se observa uma certa timidez na procura do Poder Judiciário para buscar reparação pelas perdas causadas com a corrupção, com as manobras contábeis e com a gestão temerária levada a cabo pela Petrobrás. Isso em parte se explica por que ainda não temos uma cultura desenvolvida de buscar o Poder Judiciário de forma coletiva.

A própria Ação Civil Pública, regida pela Lei 7.347/85, foi originalmente concebida para tratar de interesses difusos como o meio ambiente ou bens de valor artístico ou paisagístico, por exemplo. Não está portanto aparelhada de forma adequada para tratar as específicas questões do mercado de capitais.

Nosso sistema não oferece mecanismos disponíveis nos Estados Unidos, como por exemplo a possibilidade de um acordo na ação coletiva fazer coisa julgada para todos os potenciais atingidos, salvo aqueles que expressamente manifestarem seu interesse em sentido contrário (possibilidade de opt-out). Sem esta garantia, a companhia processada aqui no Brasil não tem interesse de fazer acordo, pois qualquer acionista individual segue com o direito de processá-la novamente. Com o opt-out americano, a empresa consegue quantificar exatamente seu risco, pois somente os que exerceram este direito poderão em tese vir a processá-la no futuro.

Mas para além desta dificuldade de ordem processual, os acionistas brasileiros (vale dizer, aqueles que adquiriram papéis da Petrobrás no Brasil) seguem com seu direito de indenização preservado, devendo buscá-lo através de ações individuais.

 

Os fundamentos jurídicos

O ponto mais importante em toda esta análise é que o direito de fundo – o direito de ver-se indenizado pelos inegáveis prejuízos sofridos – está claramente estabelecido em nosso sistema jurídico. Senão vejamos:

Em primeiro lugar, é de se fazer referência à regra geral da responsabilidade civil no direito brasileiro. Os dispositivos basilares, dos quais emanam as demais regras que se examinará adiante, estão em nosso Código Civil, e dizem assim:

Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

Especificamente quanto ao mercado de capitais, o sistema de responsabilização parte da obrigação de informação clara e transparente.

A CVM estabelece com bastante rigor a obrigação, tanto da empresa como de seus representantes, de prestar informações claras e transparentes, ao ofertar a venda de seus papéis no mercado.

A instrução CVM 400/2003, por exemplo, define o prospecto como “o documento elaborado pelo ofertante (…), e que contém informação completa, precisa, verdadeira, atual, clara, objetiva e necessária, em linguagem acessível, de modo que os investidores possam formar criteriosamente a sua decisão de investimento.”

Estatui ainda a mesma instrução que “o ofertante é o responsável pela veracidade, consistência, qualidade e suficiência das informações prestadas por ocasião do registro e fornecidas ao mercado durante a distribuição.”

Ora, só no ano de 2010, a Petrobrás captou mais de US$ 30 bilhões de dólares oferecendo seus papéis no mercado de ações. E as investigações da operação Lava Jato demonstram que muito antes disso já estava instalada uma verdadeira máfia na companhia, manipulando seus contratos, e fazendo-a gastar valores em muito superiores ao que é praticado no mercado.

Portanto, as informações do prospecto e da oferta de ações não condiziam com o que de fato estava ocorrendo na empresa. Esta discrepância, por si só, já é uma falta gravíssima, um ato ilícito, que obriga a companhia a reparar os danos causados a seus investidores com a queda brutal do valor das ações.

Na mesma linha, a instrução CVM 480/2009 estatui que o emissor deve divulgar informações de forma abrangente, equitativa e simultânea para todo o mercado, e que tais informações devem ser úteis à avaliação dos valores mobiliários por ele emitidos.

Ou seja, havendo o conhecimento de qualquer fato, a qualquer tempo, que possa influir na decisão dos investidores quanto aos riscos dos papéis emitidos pela companhia, estes fatos devem ser imediatamente divulgados.

Uma evidência fortíssima, que demonstra o desrespeito a esta obrigação, é o descaso da Petrobrás, seus administradores e seu acionista controlador – a União – com as denúncias apresentadas pela sua gerente Venina Velosa da Fonseca. Entre outro fatos, já no ano de 2011 ela informou a então presidente, Graça Foster, a respeito de irregularidades na refinaria Abreu e Lima.

No entanto, não houve uma única iniciativa no sentido de apurar o que era relatado pela funcionária da empresa.

Tal negligência faz incidir mais um dispositivo legal, no caso o artigo 117, § 1º, alínea “g” da lei 6404/76, que dispõe sobre as sociedades por ações, a conhecida Lei das SA. O citado dispositivo diz que “o acionista controlador responde pelos danos causados por atos praticados com abuso de poder.” E dentre as modalidades de exercício abusivo de poder expressamente refere o fato de se “deixar de apurar denúncia que saiba ou devesse saber procedente, ou que justifique fundada suspeita de irregularidade.”

Ainda na Lei das SA, o artigo 46 estabelece a responsabilidade do emissor, do controlador e de outros admistradores pela violação de normas legais e regulamentares que regem o mercado de valores mobiliários.

Ora, ao negligenciar da existência de fraudes bilionárias, causadas em muito pela falta dos controles que afirmava serem eficientes, e ao deixar de apurar denúncias de irregularidades, houve clara violação de normas legais e regulamentares. Configura-se portanto a responsabilidade pelos danos causados, e o consequente dever de indenizar.

Não se deve esquecer ainda que a empresa de auditoria externa também é responsável e também deve indenizar pelos danos. O artigo 26 da lei 6.385/76 , que regula o mercado de capitais no Brasil, estabelece sua responsabilidade “pelos prejuízos que causarem a terceiros em virtude de culpa ou dolo no exercício das funções.” Sua função precípua é a de auditar as demonstrações financeiras de empresas que atuam no mercado de valores mobiliários.

Ora, o prejuízo até agora reconhecido com as operações fraudulentas supera os R$ 6 bilhões. Fontes do mercado apontam que o prejuízo efetivo pode ser superior a R$ 20 bilhões. Não é aceitável que uma empresa de auditoria internacionalmente reconhecida não tenha sequer detectado alguma irregularidade ao longo de todos estes anos.

 

Conclusão

Ao longo do presente artigo, se procurou demonstrar as obrigações básicas a que está sujeito aquele que emite papéis no mercado de ações. Se demonstrou também que a Petrobrás violou estas obrigações, e que a legislação que regula a matéria a obriga, assim como a seus administradores e seu controlador – a União – a reparar os danos causados.

 

Demonstrou-se também que no Brasil o meio mais eficiente de se buscar esta reparação ainda é por meio de ações individuais. Há elementos incontroversos e inequívocos que autorizam o Poder Judiciário a condenar a Petrobrás a indenizar seus investidores.

 

Buscar esta reparação, mais do que atender a uma necessidade individual de recomposição do patrimônio, é também um ato cívico, pois contribui para o aprimoramento das instituições e para a moralidade do sistema financeiro, pondo por terra a ideia de impunidade em todo as esferas. A Justiça Criminal está fazendo seu papel, capitaneada pelo Juiz Moro. Cabe agora também aos cidadãos tomarem a iniciativa de fazerem valer seus direitos.

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